A segunda mesa de debates do Fórum Social de Porto Alegre 2020 reuniu lideranças que lutam pelo direito à terra e pela manutenção da própria cultura
Rezas, saudações à mãe terra e gritos de ordem se misturaram durante as segunda mesa de debates do Fórum Social das Resistências 2020, realizadas na tarde de quinta-feira (23), no auditório da Fetrafi – Federação dos Trabalhadores em Instituições Financeiras do Rio Grande do Sul. Cerca de 200 pessoas assistiram às apresentações dos representantes dos povos tradicionais latino-americanos, de lideranças políticas e estudantis e de organizações não-governamentais.
As falas revelavam a preocupação dos povos tradicionais, cuja cultura e direitos está em xeque. “Esse é um momento de alegria por estar aqui, mas o meu relato é de tristeza. Estamos lutando sozinhos para manter o pouco de terra que ainda temos, nossos alimentos saudáveis. Precisamos da ajuda de todos vocês”, convocou Antônio Vicente, da nação Kaingang e morador do município gaúcho de Iraí.
Mas ao contrário do que o senso comum pode imaginar, não é apenas de terra e território que se trata. Esses povos lutam para preservar costumes e assegurar o direito à alimentação tradicional. “Nos matam também ao nos convencermos a abandonar nossos ritos, sendo o principal deles o de reunirmos para comer. Não fazemos isso mais. Nos separaram e nos distraíram”, observou Kota Mulanji, nome tradicional de Regina Nogueira, coordenadora do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (leia entrevista exclusiva abaixo).
Se por um lado, os participantes da mesa conclamavam o público a somarem esforços na luta pela manutenção e reconquista de seus direitos, as falas também evidenciaram os abismos que separam cada uma das bandeiras. Os indígenas reagem aos ataques de invasores e dizem que os brancos “roubam, destroem, deixando sem futuro as nossas crianças” – conforme expressou Eduardo Ortiz, da etnia Guarani, morador de Rio Grande.
Kota Mulanji foi mais direta na provocação: “Se temos compromissos éticos reais que nos configuram como povo, nossa luta não é a mesma do povo brasileiro no geral, porque os negros e os indígenas não têm os mesmos direitos que a hegemonia branca masculina”.
Foi a deixa para o ex-governador do Rio Grande do Sul, Olívio Dutra (PT) entrar em campo. Conciliador, ele lembrou que a bandeira de cada povo tem suas especificidades, mas que é fundamental encontrar pontos em comum para fortalecer as lutas pela terra que envolvem reforma agrária, demarcação das terras indígenas e reconhecimento de territórios quilombolas.Ele ainda acrescentou uma observação: acha que na batalha cotidiana pela cidadania, as mulheres estão se destacando mais que os homens.
“Somos naturalmente seres políticos, desde que nascemos, então não podemos permitir que os outros decidam por nós. As mulheres estão cumprindo esse papel mais do que os homens, com seus protagonismos nas relações sociais, de trabalho, da família, da luta pela terra, por moradia, então, os homens precisam juntarem-se a elas”, ressaltou.
Olívio advertiu ainda para a necessidade de zelar por uma democracia forte. “Sem democracia ou com democracia mitigada, os direitos dos trabalhadores são manipulados pelos grupos econômicos mais influentes e as políticas sociais desaparecem”, finalizou, já abordando o tema do painel que viria a seguir.
“Democracia exige vigilância permanente”
Ao final do painel com os povos tradicionais, um grande debate sobre o regime democrático trouxe ao palco palestrantes que analisaram a realidade da América Latina.
Presidente do Conselho Mundial da Paz, a brasileira Socorro Gomes lembrou os casos da Venezuela, onde Nicolás Maduro sofre pressão para deixar o poder, e da Bolívia, cujo ex-mandatário, Evo Morales, renunciou depois de um comunicado do Exército. No caso do Brasil, ela avalia que a circulação de informações falsas disparadas pelas redes sociais comprometeu a eleição. “Não houve um debate aberto. E o resultado está aí, acabou com a participação popular na definição das políticas públicas a fim de beneficiar poucos”, criticou.
A mexicana Rosy Zúniga, secretária-geral do Conselho de Educação Popular de América Latina e Caribe (CEAAL), e uma das coordenadoras do próximo Fórum Social Mundial, que acontecerá no México, em 2021, disse que a união dos movimentos sociais é a única saída para resistir às políticas de opressão e aos retrocessos. “Precisamos discutir as agendas e unir esforços para desmontar essa estrutura de dominação em nossos territórios. É um desafio para a democracia enfrentar essa política de morte dos povos tradicionais, onde as mulheres na América Latina são as principais vítimas, não podemos naturalizar as mortes”, afirma.
Entrevista exclusiva – Kota Mulanji
“Tentam nos reduzir à religião, mas somos mais, somos tradição”
Quais princípios dos povos de matriz africana estão se perdendo?
Os colonizadores atacam exatamente os princípios que nos unificam e servir para a luta. Uma forma de organização política horizontal e circular, onde a nossa hierarquia é estarmos uma ao lado da outra, cada uma com sua função. E também a oralidade, o respeito aos mais velhos, o compromisso com os mais novos e a língua. A todo momento tentam nos reduzir à religião, mas somos mais, somos tradição. Temos que inverter essa lógica de que fora dos nossos espaços de culto somos invisíveis. É difícil, porque vivemos nesse sistema, adotamos essas práticas e nos anulamos como povo. A morte imaterial é cotidiana.
As mulheres negras estão tomando à frente na luta por direitos?
É que as mulheres negras sofrem mais violência do que os homens negros. Sempre foram atacadas no ambiente doméstico, por parte da patroa, do marido, dos próprios filhos. E, ao sair para trabalhar, passaram a sofrer o mesmo que os homens negros: todo o tipo de discriminação e assédio. O capitalismo tem uma ação selvagem de nos individualizar e com isso nos tornamos invisíveis e fracos.
É viável essa proposta de convergência de interesses entre os povos?
Tem que ser viável, porque não tem outra saída. Mas eu não gosto dessa palavra convergência porque teríamos que obrigatoriamente convergir para algum lugar. Prefiro a palavra compartilhar, assim teremos que sentar na mesa para dialogar em igualdade.
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