Uma pesquisa realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) com moradores das favelas de Manguinhos, Maré e Jacarezinho, comunidades localizadas na Zona Norte do Rio de Janeiro, revelou que o sofrimento psíquico foi o agravo mais percebido entre os 88 moradores desses territórios entrevistados: 80% responderam que a violência com uso de armas de fogo afeta sua saúde, de sua família ou pessoas próximas. Entre os entrevistados, funcionários da Fiocruz e também alunos do programa Educação para Jovens e Adultos (EJA).
Nascida e criada no Complexo da Maré anos, a professora Flávia Cândido, de 37 anos, sabe exatamente como a violência armada afeta sua saúde mental e a de seus três filhos. Há 2 anos Flávia começou a fazer terapia para tentar suportar e superar o fato de viver sobre uma constante insegurança, de dias após dia, com mais de 12 horas de inserção policial no seu local de moradia: “Há dois meses tive por uma crise de pânico, após passar por uma situação muito tensa em um dia de operação. O medo passa a ser constante no cotidiano de quem vive na favela. Cuidar dessa crise não é fácil, pois a saúde pública no município está desmanchando. Não temos vaga para fazer terapia, a opção tem que ser pagar particular e rezar para que no dia da consulta não seja um dia que o governo resolva fazer operação”, conta a professora.
Na pesquisa, 91% das pessoas ouvidas afirmaram que os confrontos também prejudicam a educação escolar. Nas respostas, eles afirmam que as crianças ficam sem estudar quando há conflitos na região. Uma realidade que Flávia, mãe de três meninos com idade entre 11 e 18 anos, vive diariamente: “ Meu filho mais novo está fazendo terapia particular após ter ficado preso dentro de cada durante três operações policiais. O meu filho de 16 anos ‘tomou uma dura’ e ‘um pedala’ na hora que estava indo para o colégio. Ele disse que sentiu vontade de chorar. Após isso passou a sair mais cedo de casa para tentar evitar os horários de incursão policial. Já o meu mais velho passa a semana dormindo fora da Maré, pois as operações policiais não permitem que ele consiga estudar em casa. Sempre fica muito tenso e nervoso, ele também faz terapia particular”, explica Flávia, mãe de três jovens negros.
Com base nesta pesquisa a Fiocruz lançou nesta semana a “Cartilha de Prevenção à Violência Armada em Manguinhos”. Segundo o geógrafo Leonardo Bueno, do Programa de Promoção de Territórios Urbanos Saudáveis (Ptus), da Fiocruz, além de mostrar o impacto da violência na saúde das pessoas, a cartilha tem o objetivo de garantir direitos. Por isso, também ensina como os moradores devem reagir a uma abordagem policial, por exemplo: “A ideia da cartilha surgiu da constatação de que os mais afetados pela violência são os moradores das favelas e os agentes de segurança pública. Identificamos também a necessidade ter um material informativo para todos” explicou Bueno.
Além de trazer ao público informações que comprovam o sofrimento psíquico e adoecimento da população local e de profissionais da saúde, educação e segurança por conta dos confrontos armados, a cartilha também apresenta bases legais para a busca por tratamento de todas as pessoas que são vítimas da violência com uso de armas de fogo.
Assim como a população local, os agentes da segurança pública também são impactados. De acordo com dados da Comissão de Análise da Vitimização Policial da Polícia Militar do Rio de Janeiro que constam na cartilha da Fiocruz, todo dia de três a quatro policiais são afastados com diagnósticos psiquiátricos na corporação. Em um levantamento referente ao ano de 2018, quase metade dos 1.320 militares licenciados em decorrência de problemas de saúde foi afastado por reações ao estresse grave (567).
A cartilha também dispõe de um capítulo dedicado ao Transtorno de Estresse Pós-Traumático (Tept) construído pela pesquisadora do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Claves/Ensp), Fernanda Serpeloni. Outro item esclarece dúvidas comuns entre moradores sobre como proceder durante a abordagem policial, revista e invasão de domicílio.
ALGUMAS QUESTÕES APRESENTADAS NA CARTILHA
Policial pode me revistar?
– Em regra, não. Somente se houver fundada suspeita.
O que é fundada suspeita?
– O Brasil, por ser um dos países mais racistas do mundo, de acordo com a filósofa Djamila Ribeiro e o filósofo Rodrigo França, precisou de uma lei que delimitasse (ou tentasse delimitar) o que é fundada suspeita a fim de evitar (ou tentar limitar) o arbítrio. Por isso, o artigo 240, § 2o , do Código de Processo Penal, restringiu a possibilidade de abordagem, em resumo, aos casos em que haja suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida, objetos ou papéis que apontem que o abordado acabou de praticar (ou esteja praticando) algum crime.!
Posso ser preso se for abordado e estiver sem documento?
– Não. O que existe – e isso precisa ficar bem esclarecido – é a obrigatoriedade de qualquer cidadão fornecer à autoridade policial informações sobre a sua identificação (nome, filiação, profissão), desde que – justificadamente – solicitado por ela.
O policial pode pedir a senha do meu celular ou acessar minhas conversas?
– O policial somente pode olhar seu celular com sua autorização ou com ordem judicial. Se por ventura o policial obrigar o cidadão ou cidadã a entregar a senha ou mostrar as conversas do celular, sem sua autorização ou sem ordem judicial, isto será ilegal e constituirá crime de abuso de autoridade.
O policial pode entrar em minha residência?
– Somente se ele possuir um mandado de busca e apreensão assinado por um juiz e, também, somente de dia. Se você não estiver em casa, ele poderá entrar somente acompanhado de ao menos dois vizinhos, que assinarão um relatório dizendo se concordam com o que as autoridades afirmam terem feito. O policial também poderá, excepcionalmente, entrar em sua residência se ele estiver perseguindo uma pessoa que acabou de cometer um crime e esta pessoa, durante a perseguição, entrar ou se esconder na sua casa; também poderá entrar em sua residência para te socorrer, em casos de desastres ou emergências médicas.
Você tem lembranças traumáticas, por conta dos tiroteios?
– Atenção aos sintomas, pois você pode estar com Transtorno do Estresse Pós-Traumático (TEPT). As memórias são acompanhadas de reações emocionais e físicas intensas, tais como: coração acelerado, garganta seca, sudorese, medo e culpa. Também é possível ter pesadelos, acordando no meio da noite e tendo dificuldades para voltar a dormir. Podem estar presentes sentimentos de tristeza, impotência e vergonha, além de depressão, muitas vezes levando ao isolamento social. Evitar essas memórias, ignorando ou tentando pensar em outra coisa exige muito esforço, o que acaba por trazer mais sofrimento a longo prazo. Algumas pessoas podem se sentir muito irritadas e até mais agressivas do que o costume.
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